Se a filmografia de Darren Aronofsky fosse um mapa-múndi poderia-se dizer que o americano saiu do Pólo norte para o Pólo Sul. Isso se levarmos em conta que sua película anterior, estrelada por Mickey Rourke, discutia a decadência de um velho praticante de luta livre, e sua nova produção narra o árduo caminho de uma jovem bailarina rumo ao estrelato. No entanto, as diferenças entre as duas produções não se limitam apenas a fases vividas por seus protagonistas, mas, também, no que diz respeito a forma como o cineasta constrói esses dois universos.
Em “O Lutador” (2008), a vida de Randy ‘The Ram’ é narrada da forma mais realista possível, por conta disso a crueldade da fita está exatamente em como o velho brutamontes encara o fim da fantasia de ser um astro do esporte. Já em Cisne Negro (Black Swan,2009) o processo e inverso. O grande drama na vida de Nina (Natalie Portman) se passa dentro de sua própria mente, pois seu grande desafio é ultrapassar as barreiras impostas pela sua própria imaginação.
Randy é um decadente lutador com a mente de jovem iniciante, preso em um corpo deformado pelas marcas do tempo. Já Nina está no auge de sua forma física, sua única barreira está em seu campo psíquico extremamente conturbado, justificado pela superproteção de sua mãe (Bárbara Hershey), aliada a relação de amor e ódio com seu coreógrafo (vivido pelo francês Vincent Cassel) e com sua amiga Lily (Mila Kunis).
O resultado é uma viagem a intensa guerra travada dentro da mente da personagem, algo que se aproxima bastante da recente obra prima de Lars Von Trier (“Anticristo”), porém com maior arrojo visual. É impossível ficar indiferente aos criativos recursos fotográficos usados na representação do mundo de Nina. Não é exagero dizer que a melhor bailarina do filme é a câmera de Aronofsky, que dança com extrema sintonia com a movimentação dos atores, e por vezes assume a identidade da personagem nos transportando para dentro dos olhos de Nina em meio a movimentos característicos da dança.
O processo de amadurecimento do autor foi gradativo. Seu primeiro longa, Pi (1998), já sinalizava características peculiares do diretor – como na forma como utiliza o som com o intuito de traduzir sensações impossível de serem representadas através de imagens. Mais de dez anos se passaram desde o lançamento da produção e não houve desvios em sua trajetória. Seus longas seguintes mantiveram o mesmo tom autoral, mesmo com o fracasso comercial do subestimado “Fonte da Vida” (2006).
Independente do resultado do Oscar, Cisne Negro é o melhor filme do ano – nada mal se levar em conta que foi lançado no mesmo ano de “A Rede Social”, o Easy Rider da geração Y. Provavelmente não se trata de um filme que a academia se simpatize, talvez por andar na contramão da breguices que o Oscar costuma valorizar, contudo a atuação de Natalie Portman e a fotografia de Matthew Libatique são os grandes favoritos em suas categorias.
Cisne Negro é uma espécie de Persona contemporâneo, que navega pelo campo da psiquiatria sem fazer cara de bula de remédio, e que presenteia diferentes perfis de público com um cinema visualmente deslumbrante e reflexivo. Uma verdadeira aula de cinema.